Setor produtivo alerta que regras subjetivas e arbitrárias podem afastar investimentos e gerar desemprego. Para empresas, mudanças feitas a toque de caixa deveriam ter sido mais debatidas

O Ministério do Trabalho ainda é uma pasta sem dono, mas algumas de suas decisões continuam a afetar as atividades de empresários de diversos setores. Uma instrução normativa publicada na semana passada no Diário Oficial da União listou 66 situações que podem ser enquadradas como trabalho escravo. Classificadas como indicadores de irregularidades, essas situações deverão ser observadas por fiscais para determinar se há ou não trabalho análogo à escravidão. A partir daí, o fiscal pode estabelecer a aplicação de penalidades e a inclusão da empresa na lista suja de maus empregadores.

A publicação das novas regras provocou enorme indignação em empresários e empreendedores de áreas como construção, agronegócio e indústria, entre outros segmentos. “Isso é um absurdo, as decisões foram tomadas sem o devido debate com a sociedade”, diz Luiz Antonio França, presidente da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). “É muito estranho que tudo tenha sido feito a toque de caixa, de forma apressada. Não é assim que as coisas devem funcionar em um país democrático como o Brasil. Onde está o equilíbrio, a troca de informações, a velha máxima de que é preciso ouvir todos os lados da história?”

Para entender a polêmica, é preciso voltar a outubro de 2017, quando uma portaria do governo federal alterou a definição de trabalho escravo. Pouco depois, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a medida por considerar que o texto afrouxava a fiscalização. No final de dezembro, o então ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira assinou uma nova portaria que estabelecia regras mais duras para a fiscalização do trabalho análogo à escravidão. Em seu último ato à frente da pasta, Nogueira ampliou as situações em que empregadores podem ser punidos por submeter trabalhadores a condições consideradas degradantes.

Detalhe interessante: Nogueira mudou as regras do jogo e no dia seguinte pediu demissão da pasta. “Isso não existe, é um escândalo”, diz o fundador de uma das maiores construtoras paulistas, que não quer se identificar por temer que sua empresa sofra represálias dos fiscais. “O ministério altera a lei sem consultar um dos principais setores afetados e o ministro simplesmente vai embora”, prossegue o empresário. “Ou seja, de uma hora para outra perdemos o interlocutor para um assunto de extrema importância para o nosso negócio. Agora sai essa lista com 66 situações análogas à escravidão, mas o ministério continua sem chefe. Com quem eu vou reclamar? Com o papa?”

O empresário se refere à indefinição a respeito do nome de Cristiane Brasil, escolhida por Michel Temer passar assumir o Ministério do Trabalho, mas que teve sua posse suspensa por um juiz de primeira instância por ela ter sido condenada a pagar R$ 60 mil em indenizações trabalhistas. O curioso é que o governo publicou uma instrução normativa mesmo na ausência de um ministro do Trabalho. “Sabe quem será beneficiado com essa história toda? Não é o trabalhador, é o fiscal corrupto”, diz o empresário paulista. “O sujeito inventa que a empresa pratica o trabalho análogo à escravidão e tenta morder a empresa para não aplicar penalidades. Uma vergonha.”

Com a mudança na legislação, os auditores fiscais se tornaram, de fato, mais poderosos. “Nosso problema é o empoderamento excessivo dos auditores”, diz José Carlos Rodrigues Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic). Segundo ele, agora há muito subjetividade sobre o que pode ser enquadrado como trabalho análogo à escravidão. Se as regras não são claras, diz o executivo, entra no julgamento o critério individual de cada auditor.

Investigação

Luiz França, da Abrainc, faz uma comparação com situações cotidianas para exemplificar o inédito poder do fiscal. “Se você sofre um acidente de trânsito, o policial não vai decidir na hora quem é o culpado. Todo o processo precisa de investigação e julgamento para dar à pessoa o direito de defesa. É um absurdo que no momento da fiscalização você tenha a punição. Isso pode? Na verdade, há muita confusão em torno desse assunto. É preciso mais segurança e menos subjetividade.”

Sócio da Riachuelo, uma das maiores varejistas do país, Flávio Rocha segue a mesma linha de raciocínio. “O mais importante é que esteja claro para trabalhadores e empresários o que é classificado como trabalho escravo”, diz o empresário. “Não se pode usar qualquer coisa como motivo para punir empresas sumariamente.”

Segundo os empresários, há o temor de que exatamente isso aconteça: a punição sumária das empresas por razões nem sempre transparentes. De tão caricatos, alguns episódios de tornaram conhecidos. Recentemente, uma empresa entrou na lista suja de trabalho escravo porque o colchão que o funcionário usava tinha dois centímetros a menos do que a legislação determinava. Outra companhia foi incluída na relação porque o canudo metálico do bebedouro estava fora de padrão.

“Ninguém está falando que não vai seguir regras”, diz França. “Se a empresa está com o colchão errado, que se faça uma advertência para ela se adequar. Mas isso, desculpe, não é trabalho escravo.” O executivo aborda outro ponto. “Não estamos aqui falando de empresas insensíveis. Pelo contrário.  Nós somos visceralmente contra a exploração do trabalhador e, nem é preciso dizer, contra o trabalho análogo à escravidão. No setor imobiliário, há muitas empresas de capital aberto que prestam contas a acionistas. Quem gostaria de ser acionista de uma empresa desumana? Ninguém. Reforço o que disse antes: nós só queremos regras claras , transparentes e que não estejam contaminadas por questões ideológicas.”

Incertezas trazem insegurança jurídica

Um dos efeitos negativos do vaivém do governo sobre o que é – e o que não é – trabalho análogo à escravidão poderá ser a perda de investimentos. “Precisamos de uma legislação clara e que traga segurança jurídica, sem deixar margem para arbitrariedades”, diz Flávio Amary, presidente do Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP). Quando há subjetividades, diz ele, o investidor recua para não correr riscos.

“Quem vai querer colocar dinheiro em um negócio sem saber exatamente quais são as regras do jogo?”, pergunta Luiz França, presidente da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). “Ninguém, é óbvio.” O setor imobiliário amargou perdas nos últimos três anos. De 2014 para cá, eliminou um milhão de postos de trabalhos, mas as perspectivas mudaram.

Em 2018, incorporadoras e construtoras esperam uma consistente retomada, com previsão de aumento de vendas em todas as categorias de imóveis. Mas a indefinição do governo e as constantes mudanças nas regras podem representar, segundo os empresários, um freio para um setor que tem grande impacto na economia brasileira.

As inconstantes normas trabalhistas brasileiras podem levar a situações extremas. No final do ano passado, o fazendeiro capixaba Wanderlino Medeiros Bastos cortou 450 mil pés de café de sua fazenda em Itabuna, na Bahia, e demitiu 600 funcionários. “Eu não suportava mais ser tratado pela Justiça do Trabalho e pelo Ministério Público como se tivesse cometido algum crime”, diz ele. “Sempre fiz tudo direito, mas o governo nunca me deixou trabalhar. É impossível para o empresário continuar desse jeito. A situação é triste também para os operários, que perderam seus empregos.”

Recurso no Supremo

A Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) protocolou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo que a Corte declare inconstitucional a portaria que criou a lista suja do trabalho escravo, como é chamado o cadastro de empregadores que teriam sido flagrados na prática. Na ação, a Abrainc defende que o Poder Executivo não tem competência para criar a relação suja do trabalho escravo e que, portanto, a lista é inconstitucional. A associação alega também que as fiscalizações usam conceitos amplos e subjetivos demais que dão margem a abusos e prejudicam os empregadores. “A sanha pela usurpação da competência legislativa precisa urgentemente de um freio”, diz o texto da Abrainc enviado ao Supremo. Não há data prevista para o  julgamento.

Publicado em: Estado de Minas